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sexta-feira, 6 de maio de 2011

Recordando o Jenny

Há um lugar cativo no coração de qualquer piloto para o Curtiss JN–4 "Jenny"
- Lana Wallace



Foi um daqueles momentos que marcam indelevelmente a memória; uma imagem que levarei comigo ainda que viva mil anos. Eu pilotava meu velho Cessna 120 de 1946 para o grande encontro anual da Associação de Aeronaves Experimentais em Oshkosh, Wisconsin. Era uma manhã nublada de verão. Subi acima de uma camada de nuvens que pairava a 1.500 pés da área rural de Illinois. A luz do sol, ainda perto do horizonte, dava às nuvens um tom prateado quase místico, escondendo o mundo moderno sob um véu de névoa branca e prata. Por um momento, parecia que aquela seria uma manhã de verão qualquer. O próprio tempo parecia inexato ali entre as brumas e o céu. E naquele momento, eu o vi.
Ele subia lentamente por entre os blocos de nuvens, a 800 metros ao leste. Primeiro surgiram os montantes acima da asa superior. Depois, uma asa coberta por tecido, a fuselagem, a asa inferior e os patins da asa inferior emergiram das nuvens. Era um Jenny: gracioso, delicado e emoldurado por raios prateados sobre a névoa matutina. E por um momento perguntei-me se era eu quem viajava no tempo; se meu Cessna tinha me transportado de volta para uma manhã análoga de 1920, quando os modelos Fords T eram os reis da estrada e o Curtiss JN–4D "Jenny" era o rei dos céus.
O Jenny seguia na mesma direção que eu e tinha atravessado as nuvens, nivelando-se à minha posição. Então, durante alguns instantes mágicos, voamos juntos — aviões de duas épocas diferentes lado a lado, cruzando juntos um céu atemporal de um mundo muito diferente daquele que cada avião viu na primeira vez em que voou. Mas até mesmo o meu lento Cessna, a 100 mph, voava muito mais rápido que o Jenny a 60 mph. Por isso, o Jenny foi lentamente ficando para trás, até sumir completamente de vista.


"Naquele tempo, o Jenny representava uma abordagem radicalmente nova no projeto de aeronaves."
O encontro permanece gravado tão claramente na minha memória porque avistar um Jenny é muito raro hoje em dia, ainda mais em uma embaçada manhã de verão. O Curtiss JN–4 foi o primeiro avião fabricado em grande quantidade nos EUA — mais de 10.000 unidades foram construídas entre 1915 e 1920. Mas também foi o primeiro avião com um alto número de colisões no país, causando efeitos significativos nos sobreviventes.
Alguns pilotos restauraram carcaças de antigos Jenny e conseguiram colocá-los em condições de vôo. Mas só uma pessoa muito especial e dedicada está disposta a despender tanto amor e trabalho para ressuscitar um Jenny. Isso porque mesmo novo ou reformado, o JN–4 era um avião sem grande importância com um motor suspeito, recursos de vôo antipáticos e desempenho medíocre. Então por que tantas pessoas se enternecem só de olhar para os poucos exemplares restantes dessa ave rara e antiga? Porque o Curtiss JN–4 foi o avião que apresentou o público americano à aviação. O Wright Flyer pode ter sido o primeiro avião, mas poucas unidades foram construídas, o que significa que somente algumas pessoas conseguiram vê-lo voando.
Por outro lado, o Jenny treinou, somente durante a Primeira Guerra Mundial, quase 9.000 pilotos americanos — o que representa aproximadamente 95% dos pilotos do país em 1919. Ao fim da guerra, o Exército viu-se abarrotado de milhares de aviões JN–4 de treinamento desnecessários. As autoridades resolveram, então, vendê-los como excedente ao preço de 100 dólares. Aviões excedentes e pilotos solitários logo se encontraram, dando início à era dos aviões acrobáticos de viagem. Voando de uma cidade para outra naquele imenso país em seus Jennies remendados, ganhando alguns trocados com acrobacias e passeios, esses pilotos proporcionaram a milhões de americanos seu primeiro contato com o vôo. Na verdade, o Jenny era quase sempre o primeiro avião que o público já tinha visto.
Na verdade, o JN–4 foi projetado antes da Primeira Grande Guerra, mas foi a partir dela que ganhou fama e sucesso por fornecer o motivo e o dinheiro necessários para sua montagem em grande escala. Em 1914, a alta cúpula do Exército americano baniu projetos de aviões "propulsores", como o Wright Flyer e o Curtiss Pusher original, que tinham o motor e a hélice montados na parte traseira do avião, pois essa configuração constituía um perigo significativo aos pilotos no caso de colisão. Portanto, Glenn Curtiss, precisando de um novo projeto, associou-se a um engenheiro britânico chamado B. Douglas Thomas, que trabalhava na Sopwith Aviation Company (fabricantes do Sofwith Camel e Pup).
Curtiss pediu a Thomas que criasse um avião "trator", com motor e hélice posicionados na frente, e batizou de Curtiss "Model J". Enquanto isso, Curtiss desenvolvia um projeto próprio, que chamou de "Model N". Em 1915, ele fundiu os dois projetos, criando o "JN" e marcando o nascimento da série de aviões Curtiss JN ou "Jenny". A demanda por Jennies aumentou sensivelmente quando os EUA entraram na guerra, na primavera de 1917. Entre maio de 1917 e novembro de 1918, quase 8.000 Jennies foram produzidos por Curtiss e seis outros fabricantes.
Os conceitos básicos que orientaram o projeto do Jenny — biplano com asas decaladas, motor e hélice na parte frontal, dois trens de pouso principais na parte frontal e um patim de cauda na parte traseira, sob um leme vertical e um estabilizador horizontal — hoje em dia podem parecer normais para nós, já que praticamente todos os biplanos construídos depois do Jenny seguiram a mesma fórmula. Mas, naquele tempo, o Jenny representava uma abordagem radicalmente nova no projeto de aeronaves.


"Entre todos os seus desafios, o Jenny possuía duas vantagens inegáveis aos olhos dos pilotos pós-guerra: estava disponível e era barato."
No entanto, o JN–4 ainda trazia um projeto primitivo, fato que se refletiu claramente nas suas estatísticas de acidentes. Um historiador especializado em Jennies estimou que o avião apresentava uma taxa de mortalidade comparativamente mais alta que a catapora durante e após a Primeira Guerra Mundial. Havia muitas explicações para a alta taxa de mortalidade de pilotos de Jenny, mas um dos grandes culpados era o infame motor OX-5 que alimentava a maioria dessas aeronaves. O OX-5 era um motor de oito cilindros, resfriado por água, que produzia meros 90 HP. Mas era um motor teimoso que costumava superaquecer facilmente e quase sempre perdia potência em um ou mais cilindros se fosse molhado. O avião também tinha um eixo de comando notoriamente fraco com uma probabilidade de falha tão grande que os pilotos comentavam que era mais importante dominar as habilidades de fazer um pouso forçado do que as habilidades de voar no Jenny. Um pequeno grupamento de pilotos militares de JN–4 convocado para lutar contra as incursões de Pancho Villa ao longo da fronteira com o México calculou que a distância que percorreram retornando de pousos forçados e colisões era igual à distância que já haviam voado na vida.
O Jenny apresentava características de vôo anormais mesmo quando o motor não parava. O avião não conseguia produzir potência e sustentação suficientes para manter-se reto e nivelado no ar. Por isso, as subidas de decolagem eram eventos arriscados, principalmente se o avião levasse carga. E fazer uma curva sem entrar em estol ou parafuso exigia uma pitada de elegância do piloto — o que tornava ainda mais incrível a realização de acrobacias no Jenny.
Na sua autobiografia intitulada "We", Charles Lindbergh descreve a tentativa de decolagem de um Jenny com um passageiro e um pára-quedas pesado como um saco de areia que estava querendo testar.


Foto da Air Force Historical Research Agency
Glenn Curtiss fundiu os projetos do Model J (acima) e do Model N para criar o Curtiss JN "Jenny".
"Mesmo levando essa carga, conseguimos superar o obstáculo mais próximo com uma boa margem de segurança e finalmente alcançamos uma altitude de aproximadamente 200 pés. Então, caímos em uma corrente de ar descendente que empurrou o avião para baixo, deixando-o a quase 10 pés do solo. Por mais que eu tentasse, não conseguia fazer o avião subir. À nossa frente surgiu uma montanha repleta de árvores e, para não bater nelas, fiz uma curva a favor do vento. Uma ponte ferroviária surgiu à nossa frente, e o avião, em estol, desviou dela a alguns centímetros de distância. Durante cinco minutos, passamos rente a colinas, árvores e casas. Gesticulei para Bud pedindo que cortasse o saco de areia, mas, quando ele começou a sair da cabine para alcançar a carga, a resistência adicional fez o avião descer ainda mais. Bem à nossa frente surgiu um fileira de árvores, muito mais altas que as outras, e percebi que não seria possível desviar delas. Passamos, então, sobre uma plantação de grãos. Engoli em seco e pousei na direção do vento."
"Entre todos os seus desafios, o Jenny possuía duas vantagens inegáveis aos olhos dos pilotos pós-guerra: estava disponível e era barato. As decolagens eram lances de sorte, os pousos eram imprevisíveis e o vôo era uma aventura constante, mas nada disso era problema. Ao regressarem, os pilotos militares tinham sentido o gosto de uma droga intoxicante chamada vôo. E estavam preparados para enfrentar muitas incertezas e desconfortos para manter aquela droga correndo em suas veias.
Essa paixão era requisito obrigatório para o piloto, já que o vôo acrobático ou de passeio no Jenny geralmente envolvia boas doses de incerteza e desconforto. No início da década de 20, não havia aeroportos, hangares de manutenção ou auxílios de navegação. Os pilotos de Jenny navegavam usando bússola, mapas rodoviários e ferrovias. Esses métodos funcionavam razoavelmente bem; quando o tempo estava bom, o piloto podia até mesmo terminar nos arredores certos do local para onde desejava ir. Mas não era incomum o piloto descobrir que havia voado em um dia 250 km para o norte, e não para o oeste, e que havia aterrissado no Tennessee, quando gostaria de ter chegado no Alabama. Se o tempo estivesse ruim, esses problemas pioravam. Isso se o motor OX-5 do Jenny realmente funcionasse o tempo todo.


"Os pilotos que aprenderam a voar no Curtiss Jenny tornaram-se pioneiros e líderes do serviço de correio aéreo, do vôo de linhas aéreas transcontinentais e do setor de aviação que conhecemos hoje."
Em 10 de maio de 1920, dois pilotos acrobáticos chamados Tex Marshall e Frank Palmer decolaram de Sea Breeze, na Flórida, em dois Curtiss Jennies. O destino era a cidade de Findlay, no estado de Ohio. A distância entre os dois pontos totalizava 1.236 km. Mesmo na tranqüila velocidade de 60 milhas por hora do Jenny, a viagem não deveria se estender por mais de 14 horas de vôo. Mas era 12 de junho quando os pilotos finalmente chegaram em Findlay. A viagem envolveu episódios dignos de uma saga: aviões remendados com pedaços de caixa de madeira, pernoites em celeiros, convocação de uma cidade inteira para limpar uma pista em uma área de pastagem pedregosa. Assim, os dois poderiam vender passeios e ganhar dinheiro suficiente para continuar a jornada. Os pilotos encontraram — e felizmente conseguiram superar — condições meteorológicas terríveis que poucos pilotos hoje em dia teriam a insensatez de enfrentar. Em certo momento, Marshall notou que a técnica de seguir ferrovias era decididamente mais difícil quando se voava por entre terrenos montanhosos em mau tempo, já que as vias freqüentemente pecavam pela falta de educação de desaparecer de repente em túneis, deixando os pilotos sozinhos defronte a penhascos rochosos e pouco hospitaleiros.


Underwood & Underwood/CORBIS
O Curtiss Jenny foi a estrela de inúmeros espetáculos durante os anos da acrobacia aérea.
Apesar disso tudo, a única coisa realmente extraordinária da viagem de Marshall e Palmer foi o fato de, naquela época, aquilo não ter sido nem um pouco extraordinário. Voar era assim. Os aviões acrobáticos não tiveram uma vida confortável. Também não tiveram vida longa, principalmente a partir da época em que o avião deixou de ser novidade nos Estados Unidos.
No início, um avião acrobático poderia gerar interesse e dinheiro simplesmente se exibindo e oferecendo passeios. No entanto, depois que as pessoas passavam pela experiência de voar, era necessário um atrativo a mais para capturar sua atenção e seus dólares. A necessidade de entreter levou os pilotos a forçar o Jenny e outros aviões a realizar manobras mais absurdas — e perigosas — durante a era do vôo acrobático. Primeiro os acrobatas subiram nas asas, depois se penduraram nelas enquanto os pilotos realizavam manobras, mais tarde passaram a pular de avião para avião, de carro para avião, de barco para avião e, até mesmo, a jogar partidas de arco e flecha e tênis em cima de um Curtiss JN–4 em um esforço ilimitado de atrair multidões. Tudo isso era feito em um avião cujo desempenho era considerado limitado, na melhor das hipóteses, embora contasse com um bom conjunto de braçadeiras, cabos, patins e peças no qual os acrobatas podiam se segurar.

Foi uma época de loucuras — um período de liberdade generalizada de experimentações que normalmente acontece uma vez na história de alguma nova tecnologia. Mas por mais irresponsáveis que alguns pilotos acrobatas pareçam ter sido, na verdade eles desempenharam um papel fundamental no avanço da aviação. Os pilotos acrobatas de Jenny foram os grandes pioneiros do vôo — à medida que voavam, plantavam as sementes de uma comunidade e de uma indústria de aviação mais duradoura no país. O pequeno terreno coberto de feno em Findlay, Ohio, onde os pilotos acrobáticos Marshall e Palmer venderam passeios no verão de 1920, foi transformado em um aeroporto oficial na primavera seguinte. O termo "operador de base fixa" (ou FBO) que usamos hoje para nos referirmos às instalações de combustível e manutenção dos aeroportos nasceu dos pilotos acrobáticos que finalmente se estabeleceram em cidades propícias e começaram a oferecer serviços de vôo em uma base de operações única ou fixa. E os pilotos que aprenderam a voar no Curtiss Jenny tornaram-se pioneiros e líderes do serviço de correio aéreo, do vôo de linhas aéreas transcontinentais e do setor de aviação que conhecemos hoje.



Museu da Aviação/CORBIS
Sendo uma novidade na época, o Curtiss Jenny introduziu muitas pessoas ao mundo da aviação.
Mas por que alguém, hoje, teria o trabalho de restaurar um desses intratáveis aviões e aceitar o desafio de pilotá-lo quando há tantas aeronaves melhores à disposição? Talvez pelo mesmo motivo que leva algumas pessoas a optar por escalar o Corcovado em vez de tomar o trenzinho ou dirigir até o topo. Ou pelo motivo que faz alguém velejar pelo oceano em uma jangada feita a mão em vez de pilotar uma lancha de fibra de vidro superequipada. Ou seja, pelo puro e primitivo prazer da experiência. Charles Lindbergh escreveu certa vez que gostava de voar porque era uma combinação perfeita de ciência, romantismo e aventura. Poucos aviões encarnam essa combinação tão pura e claramente como um velho e clássico JN–4 Jenny.
Pilotar um Jenny é abdicar de todos os confortos e conveniências da era moderna em favor de uma experiência mais visceral. Os pilotos de Jenny não precisam usar os músculos para cruzar os céus, superando a natureza com potência e tecnologia. Eles precisam ouvir o som dos cabos de vôo, sentir e ajustar qualquer leve tremor das asas, apaziguar uma aparente discórdia entre a temperatura da água e o ângulo de subida. O vôo de um Jenny é uma dança caprichosamente coreografada entre o ser humano, a natureza e a máquina. Manter o ritmo requer muita atenção e uma pitada de graciosidade e elegância. Ninguém nunca dirá que foi fácil. Mas valorizamos a maioria das coisas pelas quais lutamos para obter. E um belo vôo de Jenny é uma das experiências mais espetaculares que um piloto pode vivenciar.


"O vôo de um Jenny é uma dança caprichosamente coreografada entre o ser humano, a natureza e a máquina..."
O Jenny nunca chegou a nenhum lugar rapidamente, e muitos deles sequer chegaram. Mas os poucos que ainda estão em atividade são uma janela para uma época na qual voar era explorar o desconhecido. A cabine de madeira e couro do Jenny é a memória viva de uma época mais simples, na qual a vida não era regida por horas de transporte e refeições rápidas; quando fazendeiros e camponeses se reuniam para ajudar pilotos desconhecidos em apuros. Por isso, talvez a verdadeira recompensa para o desafio e o desconforto de pilotar um Jenny seja a oportunidade de entrar por essa janela e experimentar um mundo que há muito passou para as páginas da História.
Poucas pessoas têm o privilégio de sentir o gosto de um tempo que já passou. Sem dúvida, os pilotos de Jenny estão entre os privilegiados. Cruzar os céus do centro-oeste americano em uma enevoada manhã de verão a bordo de um Jenny é um escape para os problemas cotidianos da vida moderna. E o que fica são presentes outrora conhecidos somente por alguns aventureiros sortudos e corajosos: o gosto do vento, o som dos cabos de vôo e a sensação mágica de ter um avião e um céu só para si.

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